quarta-feira, 16 de junho de 2010

CRÓNICA FAMILIAR (2)


DE CATECÚMENO A ENERGÚMENO


1948, creio. A perseguição política tinha levado a família a Angola, a um relativo sossego. Os meninos da foto, aliciados por uma velha senhora simpática e beata, tiveram, com amigos pretos, pardos, brancos e uma indiana bonita que se chamava Edna, a sua catequese.

Aqui na foto acabam de fazer a primeira comunhão. O padre Emilio, que está no meio, ri-se porque o miúdo, por causa do sol forte, não é capaz de olhar para a lente da Zeiss Ikon 1933 (ano de maus presságis). O Padre Emilio era suiço. Um dia ouvi-o dizer ao meu pai que não percebia que pecados podia cometer uma criança. Nesse dia comemos leitão assado no forno da nossa casa. Eu nunca tinha comido e enjoou-me um pouco.

Meio ano depois veio outro padre, também estrangeiro, fazer-nos a confissão. Tinha beiços grossos, barbas compridas e cheirosas. Perguntou ao miúdo: "... e também fazes coisas feias com as meninas?" O cachopo respondeu que não. Mentiu, ou não sentia que essas descobertas primárias do erotismo que os humanos levam dentro de si, fossem "coisas feias". Em África respira-se de outra maneira, com ou sem religião.

E essa foi a penúltima confissão do moço, a sua penúltima comunhão. A última, ultiminha, seria compulsiva, sob ameaça de palmatoadas e/ou expulsão do colégio interno já no doce e ridente Portugal. A ocasião era uma missa por intenção da rainha D.Amélia cujos restos mortais tinham sido extraditados para Portugal por intercessão do Salazar.

No vazio que se fizera dentro do pequeno, começava o catecúmeno a transformar-se em energúmeno, como acontece aos lobisomens nas noites de lua cheia. Até hoje. Sem arrependimento nem remorsos.



[ Merci, Georges Brassens et au revoir!]

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